Figuras de historicidade
Apresentação
Desde a fundação do grupo de pesquisa em 2005, a análise fílmica assumiu o lugar principal de fundamentação metodológica, fixada como base para os desdobramentos das pesquisas, aspecto que se encontra presente em várias das publicações do grupo, como, dentre outros História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual (2007). O alvo a ser discutido era a tradição calcada nos estudos pioneiros de Marc Ferro (1976). As críticas foram dirigidas principalmente à sua crença de que há uma “realidade” a ser apreendida nos filmes pelo historiador, independentemente dos procedimentos cinematográficos utilizados, e a constatação de que, no fundo, o cinema ilustrava os conhecimentos advindos da pesquisa histórica (Morettin, 2011, p. 39-64).
As balizas teóricas e metodológicas foram ampliadas, com os aportes trazidos por historiadores como Sylvie Lindeperg (2007). Seu exame amplo e rigoroso do que se encontra na gênese e na circulação de Noite e Neblina (Nuit et Brouillard), 1995, de Alain Resnais, sem deixar de lado as questões estéticas, demonstra que a análise fílmica sozinha não consegue dar conta da dimensão histórica presente no cinema.
Os desdobramentos das atividades do grupo, principalmente a partir da realização dos, até agora, quatro Colóquios Internacionais de Cinema e História, mostra que, embora cada autor tenha sua própria abordagem, com base em referenciais teóricos elaborados conforme a necessidade do(s) objeto(s) em análise, ficam evidentes elementos de uma metodologia comum, em que são indissociáveis o estudo da linguagem cinematográfica e a análise do contexto, seja político, social ou cultural. Reconhecer a importância do relacionamento entre esses dois polos parece primordial para adensar o debate sobre a relação entre cinema e história. Para tanto, a presença inegociável das fontes documentais, a materialidade do filme e a elucidação do contexto de produção seguem sendo balizas que orientam os termos teóricos e conceituais que estabelecem diálogos com a proposta do grupo.
Sem perder a orientação dada pela análise fílmica, que o grupo entende como sendo o principal método para se constituir o conhecimento histórico e, ao mesmo tempo, abrindo intercâmbios metodológicos entre a história do cinema e a história visual, com recorte transdisciplinar dado aos objetos tratados, muitos deles compostos a partir de relações entre as mais variadas artes e linguagens como o cinema, a fotografia, as artes visuais, o teatro, a literatura e as artes cênicas.
As figuras de historicidade
Considera-se que a historicidade do audiovisual pode ser discutida a partir de três frentes, ou de três diferentes dimensões, que dialogam, mas não se confundem: 1) a história como “assunto” do produto audiovisual; 2) a historicidade da própria linguagem; 3) a circulação social dos produtos audiovisuais.
É usual que se perceba, de saída, a aproximação entre audiovisual e história pela sua relação mais óbvia, que é a representação de eventos históricos, personagens históricos ou “épocas” históricas por meio de suportes audiovisuais. No entanto, essa é apenas uma (e talvez a mais simples) abordagem sobre a historicidade do audiovisual. No Grupo de Pesquisa CNPq “História e Audiovisual”, quando essa dimensão é trabalhada, costuma-se discutir a representação do passado frente aos vetores histórico-culturais do momento em que as produções audiovisuais foram realizadas e/ou reapropriadas, considerando as variações de sentidos e os usos dessas representações frente ao seu contexto de produção e exibição, bem como dos contextos de suas eventuais reapropriações.
No entanto, para além das temáticas históricas, é importante considerar a historicidade da própria linguagem audiovisual. Como se sabe, as artes e as formas narrativas, em geral, incluindo o audiovisual, possuem em um historicidade latente, que não se reduz ao que comumente denominamos “estilo”. Essa historicidade inclui desde as condições técnicas de produção que delineiam sua forma, até os valores estéticos, as nuances da percepção, as recorrências sintáticas e os dispositivos vinculados ao audiovisual. A inserção histórica do audiovisual está implicada nessas propriedades intrínsecas e, nesse sentido, tanto as obras ficcionais (de temática histórica ou não) quanto as produções documentais possuem uma historicidade latente, que é tão relevante quanto os assuntos narrados. Uma das formas de abordar as relações entre o audiovisual e a história, portanto, é investigar as conexões entre a historicidade da sua linguagem, expressa em seus elementos formais, e a cultura da qual a obra faz parte. Esse tipo de investigação aponta para sentidos diversos, desde os casos (filmes, séries, telenovelas e jogos eletrônicos) em que há reiteração das regras já codificadas da cultura, e que contribuem para solidificar percepções, valores e juízos já consolidados, até os casos em que se observam eventuais sentidos de embate em relação ao que tratamos por convencional.
Um terceiro aspecto da historicidade do audiovisual consiste na circulação social. Interessa, neste sentido, compreender as redes de circulação, como o percurso pelas salas de cinema, festivais, streaming e demais suportes pelos quais filmes, seriados, telenovelas são consumidos, considerando-se aqui que o grupo se debruçou até o momento sobre a dimensão cinematográfica desta experiência. Neste sentido, importa recuperar as “práticas culturais” de que fala Roger Chartier (2002), examinando as redes de sociabilidade que se estabeleceram no consumo e fruição do cinema: seus espaços formativos, como cineclubes, cinematecas e demais instituições, pertencentes ao Estado ou não, com a realização de seminários, simpósios, mostras informativas e paralelas, exibições e debates; a atuação da crítica, em diferentes instâncias; os diferentes projetos culturais em pauta, dada a percepção de que o audiovisual pertence a um campo em conflito, com diversos agentes históricos envolvidos no debate, participando da construção de certa memória histórica.
Compreende-se que tais abordagens históricas do audiovisual estão abertas a novos estudos, pesquisas e debates, uma vez que a historiografia das relações entre cinema e audiovisual segue em construção. O Grupo de Pesquisa CNPp “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação” seguirá organizando diferentes atividades - encontros, seminários temáticos na ANPUH e participação em eventos - e publicando resultados científicos, com o compromisso de integrar diferentes campos de pesquisa e linguagens artísticas, envolvendo pesquisadores de distintas instituições.
Referências
CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos e SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2007.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. 2ª ed. Lisboa: Difel, 2002.
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro, Francisco Alves Ed., 1976, p. 199 - 215.
LINDEPERG, S. ‘Nuit et Brouillard’. Un film dans l’Histoire. Paris, Odile Jacob, 2007.
Desde a fundação do grupo de pesquisa em 2005, a análise fílmica assumiu o lugar principal de fundamentação metodológica, fixada como base para os desdobramentos das pesquisas, aspecto que se encontra presente em várias das publicações do grupo, como, dentre outros História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual (2007). O alvo a ser discutido era a tradição calcada nos estudos pioneiros de Marc Ferro (1976). As críticas foram dirigidas principalmente à sua crença de que há uma “realidade” a ser apreendida nos filmes pelo historiador, independentemente dos procedimentos cinematográficos utilizados, e a constatação de que, no fundo, o cinema ilustrava os conhecimentos advindos da pesquisa histórica (Morettin, 2011, p. 39-64).
As balizas teóricas e metodológicas foram ampliadas, com os aportes trazidos por historiadores como Sylvie Lindeperg (2007). Seu exame amplo e rigoroso do que se encontra na gênese e na circulação de Noite e Neblina (Nuit et Brouillard), 1995, de Alain Resnais, sem deixar de lado as questões estéticas, demonstra que a análise fílmica sozinha não consegue dar conta da dimensão histórica presente no cinema.
Os desdobramentos das atividades do grupo, principalmente a partir da realização dos, até agora, quatro Colóquios Internacionais de Cinema e História, mostra que, embora cada autor tenha sua própria abordagem, com base em referenciais teóricos elaborados conforme a necessidade do(s) objeto(s) em análise, ficam evidentes elementos de uma metodologia comum, em que são indissociáveis o estudo da linguagem cinematográfica e a análise do contexto, seja político, social ou cultural. Reconhecer a importância do relacionamento entre esses dois polos parece primordial para adensar o debate sobre a relação entre cinema e história. Para tanto, a presença inegociável das fontes documentais, a materialidade do filme e a elucidação do contexto de produção seguem sendo balizas que orientam os termos teóricos e conceituais que estabelecem diálogos com a proposta do grupo.
Sem perder a orientação dada pela análise fílmica, que o grupo entende como sendo o principal método para se constituir o conhecimento histórico e, ao mesmo tempo, abrindo intercâmbios metodológicos entre a história do cinema e a história visual, com recorte transdisciplinar dado aos objetos tratados, muitos deles compostos a partir de relações entre as mais variadas artes e linguagens como o cinema, a fotografia, as artes visuais, o teatro, a literatura e as artes cênicas.
As figuras de historicidade
Considera-se que a historicidade do audiovisual pode ser discutida a partir de três frentes, ou de três diferentes dimensões, que dialogam, mas não se confundem: 1) a história como “assunto” do produto audiovisual; 2) a historicidade da própria linguagem; 3) a circulação social dos produtos audiovisuais.
É usual que se perceba, de saída, a aproximação entre audiovisual e história pela sua relação mais óbvia, que é a representação de eventos históricos, personagens históricos ou “épocas” históricas por meio de suportes audiovisuais. No entanto, essa é apenas uma (e talvez a mais simples) abordagem sobre a historicidade do audiovisual. No Grupo de Pesquisa CNPq “História e Audiovisual”, quando essa dimensão é trabalhada, costuma-se discutir a representação do passado frente aos vetores histórico-culturais do momento em que as produções audiovisuais foram realizadas e/ou reapropriadas, considerando as variações de sentidos e os usos dessas representações frente ao seu contexto de produção e exibição, bem como dos contextos de suas eventuais reapropriações.
No entanto, para além das temáticas históricas, é importante considerar a historicidade da própria linguagem audiovisual. Como se sabe, as artes e as formas narrativas, em geral, incluindo o audiovisual, possuem em um historicidade latente, que não se reduz ao que comumente denominamos “estilo”. Essa historicidade inclui desde as condições técnicas de produção que delineiam sua forma, até os valores estéticos, as nuances da percepção, as recorrências sintáticas e os dispositivos vinculados ao audiovisual. A inserção histórica do audiovisual está implicada nessas propriedades intrínsecas e, nesse sentido, tanto as obras ficcionais (de temática histórica ou não) quanto as produções documentais possuem uma historicidade latente, que é tão relevante quanto os assuntos narrados. Uma das formas de abordar as relações entre o audiovisual e a história, portanto, é investigar as conexões entre a historicidade da sua linguagem, expressa em seus elementos formais, e a cultura da qual a obra faz parte. Esse tipo de investigação aponta para sentidos diversos, desde os casos (filmes, séries, telenovelas e jogos eletrônicos) em que há reiteração das regras já codificadas da cultura, e que contribuem para solidificar percepções, valores e juízos já consolidados, até os casos em que se observam eventuais sentidos de embate em relação ao que tratamos por convencional.
Um terceiro aspecto da historicidade do audiovisual consiste na circulação social. Interessa, neste sentido, compreender as redes de circulação, como o percurso pelas salas de cinema, festivais, streaming e demais suportes pelos quais filmes, seriados, telenovelas são consumidos, considerando-se aqui que o grupo se debruçou até o momento sobre a dimensão cinematográfica desta experiência. Neste sentido, importa recuperar as “práticas culturais” de que fala Roger Chartier (2002), examinando as redes de sociabilidade que se estabeleceram no consumo e fruição do cinema: seus espaços formativos, como cineclubes, cinematecas e demais instituições, pertencentes ao Estado ou não, com a realização de seminários, simpósios, mostras informativas e paralelas, exibições e debates; a atuação da crítica, em diferentes instâncias; os diferentes projetos culturais em pauta, dada a percepção de que o audiovisual pertence a um campo em conflito, com diversos agentes históricos envolvidos no debate, participando da construção de certa memória histórica.
Compreende-se que tais abordagens históricas do audiovisual estão abertas a novos estudos, pesquisas e debates, uma vez que a historiografia das relações entre cinema e audiovisual segue em construção. O Grupo de Pesquisa CNPp “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação” seguirá organizando diferentes atividades - encontros, seminários temáticos na ANPUH e participação em eventos - e publicando resultados científicos, com o compromisso de integrar diferentes campos de pesquisa e linguagens artísticas, envolvendo pesquisadores de distintas instituições.
Referências
CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos e SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo, Alameda Casa Editorial, 2007.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. 2ª ed. Lisboa: Difel, 2002.
FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (orgs.). História: novos objetos. trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro, Francisco Alves Ed., 1976, p. 199 - 215.
LINDEPERG, S. ‘Nuit et Brouillard’. Un film dans l’Histoire. Paris, Odile Jacob, 2007.